segunda-feira, 15 de agosto de 2011

*Lenda da Costa de Caparica...





Quem, em Lisboa ou arredores, não conhece a Costa de Caparica, esse extenso areal que nos fins-de-semana e no Verão acolhe como uma mãe milhares de corpos em busca de sol e mar! Mas quantas dessas pessoas conhecerão na realidade a história que deu o nome ao areal onde estendem os corpos e distendem os espíritos nos quentes dias de Verão?
Pois tudo começou numa tarde, há longos anos, uma tarde calma e
branca de calor em que o sol teimava em deixar-se morrer lá para o outro lado do mar. Nessa tarde, olhando a bola de fogo que inevitavelmente ia mergulhando no mar, estava a menina sentada na rocha. Parecia não ter pressa, como quem detém o segredo do fluir do tempo fechado na sua mão; mas podia, também, estar apenas à espera de alguém.
Há já um grande bocado que o velho a observava, e ela
nem dera por isso. E o velho esperou que viesse alguém que não veio. O sol
morreu, o dia ficou anil e a menina ali, sentada embrulhada na sua capa. O velho perguntou-se pela milésima vez quem seria aquela criança e, falando alto,
disse:
- Quem esperas tu, menina?
- Ninguém! Estou sozinha!
- Como te chamas?
- Não sei. Costumam chamar-me Miúda.
- Olha, Miúda, porque estás sozinha?
- Também não sei. Estive sempre assim.
- Donde vens?
- Venho da estrada. Só conheço os caminhos. Por onde passo dão-me de comer.
- E essa capa, quem ta deu, Miúda?
- Tive-a sempre. É a única coisa que tive sempre.
O velho estava admirado. Como era possível que uma menina tão pequena
andasse pelo mundo sem eira nem beira, sem saber sequer o seu nome. Teve pena da miúda e teve pena de si. Também ele era só.
- Queres ficar comigo, Miúda ? – perguntou subitamente.
- Pode ser. E fazemos o quê?
- Tu vais crescendo e eu envelhecendo. Aceitas?
- E moras aqui, ao pé do sol e do mar?
- Aqui mesmo. Ali, naquela casinha no alto do monte – indicou o velho.
- Bem, então fico contigo.
E ficaram juntos, ele a envelhecer, ela a crescer.
Viviam com o que havia: o sol, o mar, os mariscos das rochas. Ele ensinou-lhe a
falar a Deus, esse Deus que todas as manhãs aparecia resplandecente ou encoberto e pela tarde adormecia enterrado no mar ou na serra. Ela ensinou-lhe a olhar as coisas como se em cada dia fossem outras e novas.
Mas um dia o velho achou que era tempo de ir-se embora. Pediu à Miúda a capa dela porque tinha frio. Ela pôs-lhe a capa sobre o corpo estendido no catre, deu-lhe mão e deixou-se dormir juntamente com ele. Só que, quando ela acordou, ele não respondeu à sua chamada e já não forma juntos cumprimentar o sol.
A miúda não chorou. Sentiu a falta do seu velho companheiro, mas… ela sabia que a sua vida era estar só, sabia que só o momento era companheiro. Por isso ela não chorou. Enterrou o velho numa sepultura perto da igrejinha da Senhora do Monte e deixou de chamar-se Miúda.
Escolheu para si o nome de Mulher.
Nas velha casa do velho passou a viver a Mulher, solitária. A sua vida era ainda a mesma vida de antes, com o sol e o mar, a lua e as nuvens. O seu alimento, os mariscos. As suas vestes, a velha capa. Todos os dias subia ao alto do monte e rezava. Não entrava na igreja
porque a sua abóbada era o céu, os pilares, as árvores, o altar o mar. Junto do
túmulo do seu velho amigo pedia à Senhora do Monte que deixasse o mundo sempre belo e cheio de gente que ela pudesse olhar e ver. E a Mulher viveu na velha casa do velho companheiro, tantos anos que lhe perdeu a conta porque nunca os contou. Era solitária mas não estava só. De dentro de si brotava a luz do sol e da lua que bebera todos os dias e todas as noites da vida.
Certo dia, reparou que a gente da zona começava a olhá-la estranhamente, como se tivesse medo dela. Não atinava porquê, porque ela nada mais era do que Mulher, velha e solitária, a Mulher da capa que afinal todos conheciam desde sempre. E agora ouvia baixinho, quando descia à aldeia: «Bruxa, bruxa!».
Entristeceu. Entristeceu porque desconhecia que o desconhecido mete medo às pessoas. Porque não sabia que os solitários são estrangeiros, e, como estrangeiros, estranhos, e, porque estranhos, mágicos e poderosos. E porque não sabia que de dentro de si saía uma luz desconhecida quando no alto do monte erguia os braços ao sol ou à lua na sua saudação diária.
E as pessoas foram contar ao Rei, que como senhor das gentes
tem de ser dono das mentes. E o Rei mandou chamar a Mulher:
- Mulher, dizem que és bruxa!
- Real Senhor, já sou só uma velha.
- Dizem que és poderosa, que fazes ouro e malefícios?!
- Oh, meu Senhor! Sou tão pobre que só tenho esta capa desde que nasci.
Quedou-se o Rei a pensar. Olhou a Mulher e viu
que era verdade. Mandou-a embora com vergonha de ter visto o que os outros não tinham visto.
O tempo fluiu como passam os dias e as noites. O mundo todos os
dias foi sendo outro e outro. Só as gentes não mudaram o seu pensar e, por isso,
um dia, quando souberam da morte da Mulher pelo dobre dos sinos da Senhora do Monte, acorreram à velha morada, cheias de curiosidade.
Ali estava o corpo da Mulher, agora sim, só estendido no mesmo catre que servira ao velho companheiro.
Sobre o corpo a velha capa, sobre a capa um papel, para o Rei. Nesse papel ela
dizia:
« Meu senhor. Deixo-vos a capa que tenho desde que nasci. Encontrei
nela todo o ouro que diziam que eu tinha: foi o meu velho companheiro que, antes de se ir embora, aí o meteu. Eu nunca o tinha visto e agora que o vi não preciso dele. Utilizai-o nesta terra para que todos tirem dele o que mais desejarem.
Afinal, a minha capa era uma capa rica. Que o meu Deus vos
abençoe.»
Calaram-se as gentes, porque há momentos em que só o silêncio é
dono das vontades. Talvez, quem sabe, se tenha calado o mar, por um momento, ou tenha marulhado, pela Mulher, uma oração ao Sol.
Foi assim que esse areal, hoje pejado de corpos nos Verões do tempo, tomou o nome de Caparica, em memória de uma Mulher que ali apareceu um dia, quando era Miúda, vinda dos caminhos da terra, coberta por uma capa já velha.

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